24.3.10

Digestão

No caminho para casa, foi se despindo do seu nome, sua profissão, seus porquês, suas vontades. Começou a ser apenas uma sensação. Tinha gelo em seu estômago e seu coração estava queimando. Será que era o amor? Por um estranho? Um moço poeta. Poeta Silvio. Poeta Silvio Diogo e seu livro artesanal. Quem era ele? Por que esta sensação infantil e quando poderia vê-lo de novo? Só o que tinha era seu e-mail, que poderia até ter anotado errado. Meu Deus. Onde estou? Quem sou eu agora? Não tinha referência sobre coisa nenhuma e o sol da rua estava esquentando e fazia escorrer suor pelo rosto. Porque estava a pé? Deveria ter pego o carro! Que burrice! Agora vou demorar para chegar em casa. Quero ler este homem. Mas que ansiedade é essa, Clarice? Parece que nunca viu um homem na vida, ou pior, parece que você tem esperanças de ser ele o homem da sua vida. Ele não merece toda essa projeção. Ele só faz poesias. É um artista, um trabalhador, uma pessoa comum que está tentando entender alguma coisa. Como todos nós, não é? Já estava perto de casa. Não agüentou a ansiedade de pensar como seriam as outras poesias e o que escreveria no e-mail para ele. Não crie tanta expectativa. Você pode se frustrar. Mas também que coisa, Clarice! Porque você é tão racional? Calma. Tenha calma, por favor. Você tem um trabalho a fazer e ele te inspirou. Ele te fez relembrar o amor de verdade. E o amor só nasce dentro de um espaço vazio que está pronto para ser preenchido. Pronto? Não. Eu não estou pronta. Está apaixonada. Foi a cor - de- rosa. Eu precisava disso hoje. Preciso disso para desenhar. Mas são os olhos dele e não a poesia, apenas. O modo como ele falou “A fonte é o princípio do mundo” como se tivesse descoberto alguma coisa. Ele deve pensar sobre o que eu penso. Sobre tudo e nada. Sobre tudo. Impossível eu encontrar a minha paz neste turbilhão. Mas parece que eu estava com vontade de um chocolate e me ofereceram um brownie com café. Foi muito mais do que eu precisava e agora eu transbordo como uma tola. A crítica zomba da minha desproteção como uma irmã mais velha zomba da irmã mais nova quando tenta fazer algo que não domina. A crítica é muito mais antiga em mim do que a paixão. Amadurece logo! Seja mais forte do que eu! Que essa sensação me empurre para lugares desconhecidos e que eu não me impeça de ir. Que eu preserve minha força mais ancestral de sentir antes de pensar. Que eu não consiga ser somente eu, mas tudo o que não conheço. Me liberta do medo.
Chegou em casa. O sol entrava pela janela e batia diretamente em seu desenho da parede. O desenho cor-de-rosa era simplesmente insignificante. Era preciso ter muita calma e fé.
Ler as poesias a deixavam transtornada e impaciente. Ele a deixou com febre, Não se sabe se pelo calor que ela viera da rua ou se pelos pensamentos de Silvio. Ela estava dentro dele e tudo lhe parecia supérfluo perto da essência de suas palavras. Era ela. Ela estava naquelas poesias assim como somos todos o mesmo planeta. Sua individualidade pulsava em cada frase e sua tortura maior foi se perder ali como se fosse fluida e sem nenhuma base. Embora a raiz dela deslizasse numa fonte sem fim de pensamentos elevados e perturbadores. Mas ali havia uma, então desconhecida, paz.

(Parte do "Livro")

Luciana Bollina 03/2010

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