24.2.10

Escritos sobre o Voo


Geralmente não lembramos quando começamos a nos tornar desumanos. Como se a consciência apagasse o vestígio dessa traição. Mas quem não se lembra de quando se transformou em humano? Não sei o que me aconteceu exatamente. Se foi um amor, um trabalho, um filme, uma peça, que me despertou desse sono leve e manso da comodidade. Só me lembro que foi em 2006. Comecei a escrever. Tudo o que me vinha pela cabeça, eu escrevia. Ficava feliz quando no meio da rua surgia uma idéia sobre o que escrever. Eu morava sozinha. Acordava e escrevia. Escrevia até ter fome. E isso acontecia depois de um orgasmo ideal. Se é que posso chamar assim. Porque era o orgasmo de uma idéia.

Eu me ocupava de pensar e isso era um pouco estranho. Não que antes eu não pensasse, mas era diferente. Eu pensava naquilo que estava na minha frente, de uma maneira superficial e viciada. Eu pensava porque sempre gostei de pensar, mas nunca havia ido muito fundo nisso...

Nesses escritos, encontrei EU. Uma coisa que parece comigo, mas é muito maior. Não o EU do espelho, nem o EU que chama Ego, nem o EU que eu acho que sou. É um EU que quando aparece emociona. Um EU que é tudo. EU sou tudo e em mim tudo circula e existe. Por isso e para isso eu escrevia e escrevia! Não queria chegar a lugar nenhum, mas tinha certeza que isso só poderia ser Deus. Era como se estivesse conversando sinceramente com o Universo.



Em 2007 montei, junto com grandes amigos, uma peça que chamei de Voo. E nada mais era do que uma reunião desses meus primeiros textos da vida. Foi a melhor experiência de todas! E só poderia ser eu a desempenhar este papel. As palavras deveriam sair da minha boca. E como eu acreditei neste projeto! Como eu me dediquei e como eu queria falar aquilo tudo! Uma trajetória de uma menina que tinha começado a se descobrir no Mundo como um ser único e capaz de modificar a própria vida. Foi um sucesso sublime e amável.

Percebi que era isso! Eu sou artista para fazer isso! Entendi que o que eu falava na peça emocionava e mexia com a essência do homem-público. Eu estava tocando em alguma coisa debaixo de toda a pedra. Não dá para explicar a doçura que uma senhora de 45 anos me olhou e disse:- “Eu faço teatro por isso que você falou aqui. Comecei agora, mas o buraco de antes não existe mais”. Uma jovem de 15 anos não conseguiu falar. Ela me abraçou e chorou. Mas não sem antes me olhar nos olhos. Esse olhar foi também um presente e uma recompensa. Mas não era EU na peça. Era todo o Mundo. Aquele Eu que é todo Mundo. Não havia vaidade, havia presente. Não havia medo, havia fé. E não havia pretensão, havia verdade. E só a verdade salva a Arte. Aquela que é a Deusa do pensamento e cavalga no cavalo branco da revolução e da paz. Que é capaz de remover teias intermináveis de um vício filosofal e promover esperança num poço de escuridão.

Essa Arte verdadeira me transforma em ser – humano.

E eu cheguei a ter medo, a repensar se era capaz de fazer um monólogo. Uma atriz jovem como eu. Que não tinha experiência e nem sabia direito como se relacionar com um público, sozinha. Foi apavorante sim. Mas muito mais estimulante. Eu não podia desistir. Já havia gente envolvida e acreditando também. Como eu poderia querer tanto falar aquilo e depois dizer: “Eu acho que é melhor chamar uma atriz para falar aquilo que eu penso mais profundamente!”. Não! Eu não poderia fazer isso. E tive que acreditar em mim. No EU do espelho. Foi uma luta. EU do Espelho versus Eu Todo Mundo. Mas eu sempre pensava naqueles momentos de solidão em que escrevia e escrevia sem pensar a função daquilo e se estava bom e bonito. E assim que fiz a peça. Com verdade e amor. Sem deixar que o julgamento dominasse minha mente.

O Voo teve temporada curta em São Paulo e agora vou remontá-lo aqui no Rio com nova direção e novos amigos! Vou remontar porque acredito nisso assim como acredito na paz. Considerando que mudei muito e que vi qual faixa etária se identificou mais com aquela expressão, mudei algumas coisas no texto e abordei mais alguns assuntos. Espero que a inocência dessa personagem brote em mim novamente. Que a Arte me ilumine em seu cavalo de luz e que as lutas sejam mais pacíficas. Que a humanidade se preserve pura e que me desperte a cada dia. Que seja como deve ser. Mas que eu nunca desista de querer ser a verdadeira artista. Aquela que dentre tantas bocas do Mundo é a que assopra compreensão e totalidade.

18.2.10

Clarice Clara

"Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Nao, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.
Vivo em escuridão da alma, e o coração pulsando, sôfrego pelas futuras batidas que não podem parar". - Clarice Lispector