1.6.10

Apresentação do Projeto Voo

Numa performance que vai da poesia ao Clown, do drama à técnica circense, a atriz, cantora e bailarina Luciana Bollina nos apresenta Voo, um monólogo que revela o percurso de uma jovem em busca do autoconhecimento, numa viagem lúdica sobre a eterna busca pela liberdade criativa.
Associando prosa, poesia, música, uso do corpo e acrobacia aérea à interpretação, o espetáculo aborda e põe em evidência os medos, as paixões, as seduções e os malefícios das drogas, os rótulos de imagem e beleza impostos pela sociedade, e a liberdade da aceitação da personalidade e da individualidade, valores humanos que se perdem no meio de uma geração multitarefa e dispersa. Com uma estrutura cênica intimista, que exige maior proximidade do público, Voo propõe um questionamento existencial e social, através dos conflitos comuns aos jovens sobre seu papel no mundo, e acompanha o incômodo da jovem personagem com relação aos limites e barreiras da sociedade e seu questionamento quanto aos rótulos do mundo material. Estabelece-se, assim, uma separação entre seu mundo interno e cheio de possibilidades e o mundo comum a todos nós. Todo o seu anseio está em se entender e revelar o seu potencial, podendo ser livre e feliz.
O teatro se aproxima de uma pintura viva, e a união da luz, da cor, das imagens, da música, da dança e da interpretação possibilita a compreensão dos sentimentos da personagem através de todos os canais de sensibilidade. Performático, poético, com uma linguagem artística muito ampla e com fortes objetivos sociais, filosóficos e existenciais, Voo põe em evidência os temores internos, os bloqueios externos, os hábitos de uma geração de jovens super conectada pelas tecnologias, amedrontada pela violência cotidiana e amparada por drogas e psicotrópicos utilizados como fuga e como forma de socialização.
Após uma temporada experimental no Teatrix de São Paulo, de agosto a outubro de 2007, em março de 2008 Voo participou do Festival Internacional de Teatro de Curitiba. Agora, sob a direção do ator, diretor e dramaturgo Ricardo Conti, chega ao Rio em nova montagem.

26.5.10

Uma Multidão de Mim

Sou fria e branca
Para entender o círculo que me contorna
E me fixa e estabiliza
Como a raiz de uma árvore que floresce.

Imito o sol, sendo amarela e laranja
Para que o preto sem estrelas não me engula
Ele apenas assombra e assopra.

Dentro de mim pode-se ver um quadro colorido com tons e sobre-tons.
O mundo tem uma sala.
Nela há quadros infinitos, porém coloridos...
O mundo é exigente, modifica os quadros pra uma sala mais bonita.
Sou arte pintada de Mundo Real.

22.5.10

O CÔNEGO OU METAFÍSICA DO ESTILO

De Machado de Assis


— "VEM DO LÍBANO, esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras, deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda casta de pombos..."
— "Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhe façais saber que estou enferma de amor..."
Era assim, com essa melodia do velho drama de Judá, que procuravam um ao outro na cabeça do Cônego Matias um substantivo e um adjetivo... Não me interrompas, leitor precipitado; sei que não acreditas em nada do que vou dizer. Di-lo-ei, contudo, a despeito da tua pouca fé, porque o dia da conversão pública há de chegar.
Nesse dia, — cuido que por volta de 2222, — o paradoxo despirá as asas para vestir a japona de uma verdade comum. Então esta página merecerá, mais que favor, apoteose. Hão de traduzi-la em todas as línguas. As academias e institutos farão dela um pequeno livro, para uso dos séculos, papel de bronze, corte-dourado, letras de opala embutidas, e capa de prata fosca. Os governos decretarão que ela seja ensinada nos ginásios e liceus. As filosofias queimarão todas as doutrinas anteriores, ainda as mais definitivas, e abraçarão esta psicologia nova, única verdadeira, e tudo estará acabado. Até lá passarei por tonto, como se vai ver.
Matias, cônego honorário e pregador efetivo, estava compondo um sermão quando começou o idílio psíquico. Tem quarenta anos de idade, e vive entre livros e livros para os lados da Gamboa. Vieram encomendar-lhe o sermão para certa festa próxima; ele que se regalava então com uma grande obra espiritual, chegada no último paquete, recusou o encargo; mas instaram tanto, que aceitou.
— Vossa Reverendíssima faz isto brincando, disse o principal dos festeiros.
Matias sorriu manso e discreto, como devem sorrir os eclesiásticos e os diplomatas. Os festeiros despediram-se com grandes gestos de veneração, e foram anunciar a festa nos jornais, com a declaração de que pregava ao Evangelho o Cônego Matias, "um dos ornamentos do clero brasileiro". Este "ornamento do clero" tirou ao cônego a vontade de almoçar, quando ele o leu agora de manhã; e só por estar ajustado, é que se meteu a escrever o sermão.
Começou de má vontade, mas no fim de alguns minutos já trabalhava com amor. A inspiração, com os olhos no céu, e a meditação, com os olhos no chão, ficam a um e outro lado do espaldar da cadeira, dizendo ao ouvido do cônego mil cousas místicas e graves. Matias vai escrevendo, ora devagar, ora depressa. As tiras saem-lhe das mãos, animadas e polidas. Algumas trazem poucas emendas ou nenhumas. De repente, indo escrever um adjetivo, suspende-se; escreve outro e risca-o;
mais outro, que não tem melhor fortuna. Aqui é o centro do idílio. Subamos à cabeça do cônego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo cousa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita cousa ao pé da tua cabeça, que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cônego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjetivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que ainda assim não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjetivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...
— Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha grande memória psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavra tem sexo.
— Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.
— Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cônego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem é que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cônego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjetivo, que lhe não aparece: "Vem do Líbano, vem..." E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: "Julieta é o sol... ergue-te, lindo sol." Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o thaler ou o dólar, o florim ou a libra que é tudo o mesmo dinheiro.
Portanto, vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjetivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.
Ouvem-se agora e procuram-se. Caminho difícil e intrincado que é este de um cérebro tão cheio de cousas velhas e novas! Há aqui um burburinho de idéias, que mal deixa ouvir os chamados de ambos; não percamos de vista o ardente Sílvio, que lá vai, que desce e sobe, escorrega e salta; aqui, para não cair, agarra-se a umas raízes latinas, ali abordoa-se a um salmo, acolá monta num pentâmetro, e vai sempre andando, levado de uma força íntima, a que não pode resistir.
De quando em quando, aparece-lhe alguma dama — adjetivo também — e oferece-lhe as suas graças antigas ou novas; mas, por Deus, não é a mesma, não é a única, a destinada ab eterno para este consórcio. E Sílvio vai andando, à procura da única. Passai, olhos de toda cor, forma de toda casta, cabelos cortados à cabeça do Sol ou da Noite; morrei sem eco, meigas cantilenas suspiradas no eterno violino; Sílvio não pede um amor qualquer, adventício ou anônimo; pede um certo amor
nomeado e predestinado.
Agora não te assustes, leitor, não é nada; é o cônego que se levanta, vai à janela, e encosta-se a espairecer do esforço. Lá olha, lá esquece o sermão e o resto. O papagaio em cima do poleiro, ao pé da janela, repete-lhe as palavras do costume e, no terreiro, o pavão enfuna-se todo ao sol da manhã; o próprio sol, reconhecendo o cônego, manda-lhe um dos seus fiéis raios, a cumprimentá-lo. E o raio vem, e pára diante da janela: "Cônego ilustre, aqui venho trazer os recados do sol, meu senhor e pai." Toda a natureza parece assim bater palmas ao regresso daquele galé do espírito. Ele próprio alegra-se, entorna os olhos por esse ar puro, deixa-os ir fartarem-se de verdura e fresquidão, ao som de um passarinho e de um piano; depois fala ao papagaio, chama o jardineiro, assoa-se, esfrega as mãos, encosta-se. Não lhe lembra mais nem Sílvio nem Sílvia.
Mas Sílvio e Sílvia é que se lembram de si. Enquanto o cônego cuida em cousas estranhas, eles prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba nem suspeite nada. Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pulula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. Aqui caíram eles, à procura um do outro, chamando e suspirando. Dê-me a leitora a mão, agarre-se o leitor a mim, e escorreguemos também.
Vasto mundo incógnito. Sílvio e Sílvia rompem por entre embriões e ruínas. Grupos de idéias, deduzindo-se à maneira de silogismos, perdem-se no tumulto de reminiscências da infância e do seminário. Outras idéias, grávidas de idéias, arrastam-se pesadamente, amparadas por outras idéias virgens. Cousas e homens amalgamam-se; Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. Memórias pias e familiares cruzam-se e confundem-se. Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que ora jazem na grande unidade impalpável e obscura.
— Vem do Líbano, esposa minha...
— Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém...
Ouvem-se cada vez mais perto. Eis aí chegam eles às profundas camadas de teologia, de filosofia, de liturgia, de geografia e de história, lições antigas, noções modernas, tudo à mistura, dogma e sintaxe. Aqui passou a mão panteísta de Spinoza, às escondidas; ali ficou a unhada do Doutor Angélico; mas nada disso é Sílvio nem Sílvia. E eles vão rasgando, levados de uma força íntima, afinidade secreta, através de todos os obstáculos e por cima de todos os abismos. Também os desgostos hão de vir. Pesares sombrios, que não ficaram no coração do cônego, cá estão, à laia de manchas morais, e ao pé deles o reflexo amarelo ou roxo, ou o que quer que seja da dor alheia e universal. Tudo isso vão eles cortando, com a rapidez do amor e do desejo.
Cambaleias, leitor? Não é o mundo que desaba; é o cônego que se sentou agora mesmo. Espaireceu à vontade, tornou à mesa do trabalho, e relê o que escreveu, para continuar; pega da pena, molha-a, desce-a ao papel, a ver que adjetivo há de anexar ao substantivo.
Justamente agora é que os dous cobiçosos estão mais perto um do outro. As vozes crescem, o entusiasmo cresce, todo o Cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre. Frases alegres, anedotas de sacristia, caricaturas, facécias, disparates, aspectos estúrdios, nada os retém, menos ainda os faz sorrir. Vão, vão, o espaço estreita-se. Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu; ficai, rugas extintas, velhas charadas, regras de voltarete, e vós também, células de idéias novas, debuxos de concepções, pó que tens de ser pirâmide, ficai, abalroai, esperai, desesperai, que eles não têm nada convosco. Amam-se e procuram-se.
Procuram-se e acham-se. Enfim, Sílvio achou Sílvia. Viram-se, caíram nos braços um do outro, ofegantes de canseira, mas remidos com a paga. Unem-se, entrelaçam os braços, e regressam palpitando da inconsciência para a consciência. "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?", pergunta Sílvio, como no Cântico; e ela, com a mesma lábia erudita, responde-lhe que "é o selo do seu coração", e que "o amor é tão valente como a própria morte".
Nisto, o cônego estremece. O rosto ilumina-se-lhe. A pena cheia de comoção e respeito completa o substantivo com o adjetivo. Sílvia caminhará agora ao pé de Sílvio, no sermão que o cônego vai pregar um dia destes, e irão juntinhos ao prelo, se ele coligir os seus escritos, o que não se sabe.

3.5.10

O Mago




"No centro das recordações de Hesse (escritor de "Sidarta", "Demian" e outros) um desejo que não só fundou a sua literatura: o de se tornar um mago. Esse sonho, ele rememora, surgiu quando ainda era um menino. Homem maduro, ele o vê como "fruto de uma certa insatisfação com o que chamavam realidade e que às vezes me parecia ser apenas uma tola convenção dos adultos"".

José Castello no jornal O Globo.

22.4.10

Soldados Prontos?

Meus sinceros votos de paz
Àqueles que vivem inundados na beleza e na desgraça
Que se comece um novo tempo depois das traças
E a calamidade se transforme em cais

De Sorocaba até o Rio
Vejo a vida por outro ângulo
Imersa em sonhos de criança
Não desistindo de entrar na dança
Comungo da diferença espero e espio

Tudo passa assa e caça
No último grito triste dos ignorantes
Anunciando o aço da justiça
Fazendo parte de uma ameaça
Testando rezas para ser como antes
Liquidando o sonho da máscara postiça

Talvez agora possamos ser mais do que somos
E a calamidade represente um sonho
Sonhado por pequenos capitães de notas
Que acordarão soldados prontos para guiar as tropas

É um desejo nobre e forçado
Filho de um tempo pobre e alvoroçado
Representando o ponto de mutação
Do capitalismo à revolução!

24.3.10

Digestão

No caminho para casa, foi se despindo do seu nome, sua profissão, seus porquês, suas vontades. Começou a ser apenas uma sensação. Tinha gelo em seu estômago e seu coração estava queimando. Será que era o amor? Por um estranho? Um moço poeta. Poeta Silvio. Poeta Silvio Diogo e seu livro artesanal. Quem era ele? Por que esta sensação infantil e quando poderia vê-lo de novo? Só o que tinha era seu e-mail, que poderia até ter anotado errado. Meu Deus. Onde estou? Quem sou eu agora? Não tinha referência sobre coisa nenhuma e o sol da rua estava esquentando e fazia escorrer suor pelo rosto. Porque estava a pé? Deveria ter pego o carro! Que burrice! Agora vou demorar para chegar em casa. Quero ler este homem. Mas que ansiedade é essa, Clarice? Parece que nunca viu um homem na vida, ou pior, parece que você tem esperanças de ser ele o homem da sua vida. Ele não merece toda essa projeção. Ele só faz poesias. É um artista, um trabalhador, uma pessoa comum que está tentando entender alguma coisa. Como todos nós, não é? Já estava perto de casa. Não agüentou a ansiedade de pensar como seriam as outras poesias e o que escreveria no e-mail para ele. Não crie tanta expectativa. Você pode se frustrar. Mas também que coisa, Clarice! Porque você é tão racional? Calma. Tenha calma, por favor. Você tem um trabalho a fazer e ele te inspirou. Ele te fez relembrar o amor de verdade. E o amor só nasce dentro de um espaço vazio que está pronto para ser preenchido. Pronto? Não. Eu não estou pronta. Está apaixonada. Foi a cor - de- rosa. Eu precisava disso hoje. Preciso disso para desenhar. Mas são os olhos dele e não a poesia, apenas. O modo como ele falou “A fonte é o princípio do mundo” como se tivesse descoberto alguma coisa. Ele deve pensar sobre o que eu penso. Sobre tudo e nada. Sobre tudo. Impossível eu encontrar a minha paz neste turbilhão. Mas parece que eu estava com vontade de um chocolate e me ofereceram um brownie com café. Foi muito mais do que eu precisava e agora eu transbordo como uma tola. A crítica zomba da minha desproteção como uma irmã mais velha zomba da irmã mais nova quando tenta fazer algo que não domina. A crítica é muito mais antiga em mim do que a paixão. Amadurece logo! Seja mais forte do que eu! Que essa sensação me empurre para lugares desconhecidos e que eu não me impeça de ir. Que eu preserve minha força mais ancestral de sentir antes de pensar. Que eu não consiga ser somente eu, mas tudo o que não conheço. Me liberta do medo.
Chegou em casa. O sol entrava pela janela e batia diretamente em seu desenho da parede. O desenho cor-de-rosa era simplesmente insignificante. Era preciso ter muita calma e fé.
Ler as poesias a deixavam transtornada e impaciente. Ele a deixou com febre, Não se sabe se pelo calor que ela viera da rua ou se pelos pensamentos de Silvio. Ela estava dentro dele e tudo lhe parecia supérfluo perto da essência de suas palavras. Era ela. Ela estava naquelas poesias assim como somos todos o mesmo planeta. Sua individualidade pulsava em cada frase e sua tortura maior foi se perder ali como se fosse fluida e sem nenhuma base. Embora a raiz dela deslizasse numa fonte sem fim de pensamentos elevados e perturbadores. Mas ali havia uma, então desconhecida, paz.

(Parte do "Livro")

Luciana Bollina 03/2010

6.3.10

Ensaio do Objetivo do Subjetivo

"O diário íntimo carrega consigo a idéia de algo secreto. No seu livro, Denise Schittine, explica a origem da palavra segredo a partir do autor A. S. Levy. Segredo é uma derivação do verbo secerno, que significa separar, discernir. Ou seja, segredo tem relação com a escolha que se faz entre quem deve e quem não deve saber algo".

A idéia de começar a falar sobre algo e compartilhar uma opinião, impressão ou sensação sobre algum fato qualquer da vida já é um indício de desejo de eternidade. Quando apenas falamos com um amigo sobre alguma coisa, transformamos aquilo em uma informação que não existia antes. Portanto através de uma opinião ou pensamento ou manifestação, eu passo a existir. Me parece que cada vez mais precisamos de provas sobre existirmos e termos pensamentos. Quando resolvi montar um blog, para dividir meus pensamentos com outras pessoas, percebi que uma outra identidade passou a existir. Uma identidade anônima e não tão anônima assim. Um EU na internet. Como se isso fosse possível. Não é. Mas cria uma divertida e lúdica ilusão. Permite contatos rápidos e diretos, sem meias palavras. Mas ainda assim, prefiro sair para tomar um café. Permite que eu esteja escrevendo essas palavras e compartilhe com os visitantes do meu blog, que ainda tem a minha foto aí em cima para dizer que estas palavras são minhas, este pensamento é meu. É a vaidade extrapolada das mídias tecnológicas. Ou então uma vaidade tolerável e inocente, não mais considerada um pecado. Sou vítima do meu tempo. Pertenço a ele. Além de eu ser atriz. Que é ser um sinônimo de comunicação com o externo. Compartilhar esta idéia, talvez, porque queira uma opinião, ou ainda que este diálogo-monólogo me crie um interlocutor fantasma que concorda e pensa junto comigo. Dando-me coragem para a expressão íntima. Ainda assim, tenho meus múltiplos caderninhos cheios de solilóquios que estão escritos de mim para eu. E só. Mentira. Estão escritos para não serem mais meus. Persistindo aí também a idéia de eternidade. Para que a minha bisneta encontre esses caderninhos empoeirados dentro de uma caixa e que se emocione pensando: “Como a bisa era parecida comigo”. Ou então no intuito terapêutico de organizar a mente. E depois de alguns anos reler tudo aquilo e pensar: “Como eu fui feliz!” ou “Como eu mudei” ou simplesmente reviver tudo aquilo como se tivesse apertado o << REW. Mas essa tendência cibernética de colocar tudo em pastas e ficar tranqüilo porque a vida vivida está bem guardada não basta. Precisa-se divulgar. Multiplicar. Ter fãs. Isto é a cultura da celebridade. Olhe só. Tudo se mistura.

“Para o filósofo Jean Baudrillard, o sucesso da vida real no mundo virtual se deve ao fato de que a mídia e a televisão não são mais capazes de prestar contas dos fatos insuportáveis do mundo e, por isso, houve uma descoberta do cotidiano como um atrativo neutralizador. Nas palavras de Baudrillard, a banalidade existencial é hoje o acontecimento mais mortífero, a atualidade mais violenta”.

Eu concordo, mas não sou radical. Acredito que assim como a religião, o nosso tempo serve para salvar ou cegar. Se posso me salvar escrevendo. Escrevo mais do que depressa e com muita fé. E digo “salvar” porque nossa condição humana é angustiante em vários sentidos e viver da arte, agora digo mais pessoalmente, não é nada anti-ansiolítico. Então escrever resolve em mim uma ansiedade e me coloca em ordem comigo mesma de uma forma espetacular e poética. Descubro meu poder de transformação na criação, pois sirvo de canal para que o meio em que vivo se manifeste através de mim. Assim acredito. Mas se o Blog assumir o papel de algo além de mim. Algo que ocupe mais o meu tempo do que sair para ver o Mundo, aí é o caso de começar a me preocupar. Não é nenhuma novidade os sintomas do vídeo-game. O adolescente vira uma ostra. E só lá na frente vai perceber a causa de tanta dificuldade em socializar. A tela luminosa transforma-se em mais que distração. Passa a ser um hábito ruim e que afasta do convívio (físico, não virtual). Mas isso tudo porque estamos numa sociedade muito acomodada em sua privacidade para se importar com o afastamento do convívio social. A privacidade se transforma na coisa mais importante. Todo mundo com sua televisão, seu computador, seu carro, seu orkut, facebook, twitter, myspace, etc. e etc. E não sobra tempo para distrações mais reais. Como se não fossem mais tão importantes, sem contar com a violência crescente das ruas que prende ainda mais as pessoas em casa. Além de passar a ser um hábito o xingamento no trânsito, simplesmente pelo fato de estarmos xingando uma máquina que não pode olhar nos olhos. Ignorando completamente em que circunstância a pessoa no volante está quando não acelerou imediatamente quando o sinal abriu.

Enfim, a violência, os excessos de timidez, a vaidade, a eternidade, o medo da morte, tudo isso sempre existiu entre nós e viver com tudo isso a volta e dentro é a tal condição humana. Resistir ao excesso de acomodação é uma tarefa que exige esforço e atenção redobrada. Resistir ao hábito e perceber aquilo que você está fazendo da sua vida é estar vivo. Apenas por querer entender, mesmo não entendendo, descubro caminhos incríveis. Não estou aqui para entender nada, nem para querer ser eterna através de letras. Quando lemos uma história, somos os personagens e não se lembra do autor da escrita. Acreditar na eternidade é vaidade mas também é ingênuo, pois somos mais do que eternos quando não acreditamos em separação. Deixando que a privacidade seja nada mais do que uma criativa ilusão.
O professor e escritor Charles Kiefer afirma que "o blog é a objetivação de uma nova subjetividade."
Os historiadores Philippe Ariès e Georges Duby pesquisaram a origem do conceito de privacidade e encontraram, em dicionários de língua francesa do século XIX — momento em que a vida privada adquiria todo o vigor — o verbo privar, significando domesticar, domar.

PS: As observações entre aspas foram tiradas deste site: http://www.simonebeauvoir.kit.net/artigos_p05.htm

24.2.10

Escritos sobre o Voo


Geralmente não lembramos quando começamos a nos tornar desumanos. Como se a consciência apagasse o vestígio dessa traição. Mas quem não se lembra de quando se transformou em humano? Não sei o que me aconteceu exatamente. Se foi um amor, um trabalho, um filme, uma peça, que me despertou desse sono leve e manso da comodidade. Só me lembro que foi em 2006. Comecei a escrever. Tudo o que me vinha pela cabeça, eu escrevia. Ficava feliz quando no meio da rua surgia uma idéia sobre o que escrever. Eu morava sozinha. Acordava e escrevia. Escrevia até ter fome. E isso acontecia depois de um orgasmo ideal. Se é que posso chamar assim. Porque era o orgasmo de uma idéia.

Eu me ocupava de pensar e isso era um pouco estranho. Não que antes eu não pensasse, mas era diferente. Eu pensava naquilo que estava na minha frente, de uma maneira superficial e viciada. Eu pensava porque sempre gostei de pensar, mas nunca havia ido muito fundo nisso...

Nesses escritos, encontrei EU. Uma coisa que parece comigo, mas é muito maior. Não o EU do espelho, nem o EU que chama Ego, nem o EU que eu acho que sou. É um EU que quando aparece emociona. Um EU que é tudo. EU sou tudo e em mim tudo circula e existe. Por isso e para isso eu escrevia e escrevia! Não queria chegar a lugar nenhum, mas tinha certeza que isso só poderia ser Deus. Era como se estivesse conversando sinceramente com o Universo.



Em 2007 montei, junto com grandes amigos, uma peça que chamei de Voo. E nada mais era do que uma reunião desses meus primeiros textos da vida. Foi a melhor experiência de todas! E só poderia ser eu a desempenhar este papel. As palavras deveriam sair da minha boca. E como eu acreditei neste projeto! Como eu me dediquei e como eu queria falar aquilo tudo! Uma trajetória de uma menina que tinha começado a se descobrir no Mundo como um ser único e capaz de modificar a própria vida. Foi um sucesso sublime e amável.

Percebi que era isso! Eu sou artista para fazer isso! Entendi que o que eu falava na peça emocionava e mexia com a essência do homem-público. Eu estava tocando em alguma coisa debaixo de toda a pedra. Não dá para explicar a doçura que uma senhora de 45 anos me olhou e disse:- “Eu faço teatro por isso que você falou aqui. Comecei agora, mas o buraco de antes não existe mais”. Uma jovem de 15 anos não conseguiu falar. Ela me abraçou e chorou. Mas não sem antes me olhar nos olhos. Esse olhar foi também um presente e uma recompensa. Mas não era EU na peça. Era todo o Mundo. Aquele Eu que é todo Mundo. Não havia vaidade, havia presente. Não havia medo, havia fé. E não havia pretensão, havia verdade. E só a verdade salva a Arte. Aquela que é a Deusa do pensamento e cavalga no cavalo branco da revolução e da paz. Que é capaz de remover teias intermináveis de um vício filosofal e promover esperança num poço de escuridão.

Essa Arte verdadeira me transforma em ser – humano.

E eu cheguei a ter medo, a repensar se era capaz de fazer um monólogo. Uma atriz jovem como eu. Que não tinha experiência e nem sabia direito como se relacionar com um público, sozinha. Foi apavorante sim. Mas muito mais estimulante. Eu não podia desistir. Já havia gente envolvida e acreditando também. Como eu poderia querer tanto falar aquilo e depois dizer: “Eu acho que é melhor chamar uma atriz para falar aquilo que eu penso mais profundamente!”. Não! Eu não poderia fazer isso. E tive que acreditar em mim. No EU do espelho. Foi uma luta. EU do Espelho versus Eu Todo Mundo. Mas eu sempre pensava naqueles momentos de solidão em que escrevia e escrevia sem pensar a função daquilo e se estava bom e bonito. E assim que fiz a peça. Com verdade e amor. Sem deixar que o julgamento dominasse minha mente.

O Voo teve temporada curta em São Paulo e agora vou remontá-lo aqui no Rio com nova direção e novos amigos! Vou remontar porque acredito nisso assim como acredito na paz. Considerando que mudei muito e que vi qual faixa etária se identificou mais com aquela expressão, mudei algumas coisas no texto e abordei mais alguns assuntos. Espero que a inocência dessa personagem brote em mim novamente. Que a Arte me ilumine em seu cavalo de luz e que as lutas sejam mais pacíficas. Que a humanidade se preserve pura e que me desperte a cada dia. Que seja como deve ser. Mas que eu nunca desista de querer ser a verdadeira artista. Aquela que dentre tantas bocas do Mundo é a que assopra compreensão e totalidade.

18.2.10

Clarice Clara

"Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Nao, é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos meus modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-me como posso entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus.
Vivo em escuridão da alma, e o coração pulsando, sôfrego pelas futuras batidas que não podem parar". - Clarice Lispector